Olá, assinantes. Pra quem reside no Rio Grande do Sul, espero que estejam bem. Pra quem vive em outros cantos do Brasil e da América Latina, agradeço em nome dos gaúchos o apoio que vem sendo aportado aos atingidos pelas enchentes. Também agradeço as mensagens dos amigos, enviadas desde o dia 3 de maio, buscando notícias da minha família em Porto Alegre.
Ficamos ilhados três dias em casa e fomos resgatados de barco. Agora estamos em segurança, torcendo pra água baixar e pra não faltar mais luz nem água.
IMPORTANTE: Neste momento de catástrofe climática no Rio Grande do Sul, sugiro que se informem através do Matinal, Sul21, Brasil de Fato RS e Nonada, periódicos locais independentes que estão fazendo a diferença na cobertura, cobrando agentes públicos e privados.
Fora de casa, mas com recursos alternativos e saúde, peço licença aos leitores para retomar os envios por aqui. O plano inicial era ter disparado essa newsletter no dia 4 de maio.
Neste momento que ainda é muito grave em todo Rio Grande do Sul, pode parecer leviano enviar recomendações musicais. Contudo, a retomada deste canal é uma forma de lutar pelo mundo que queremos e que está ameaçado.
Se também estiverem seguros e com as mínimas condições, fica o convite à leitura.
Na edição anterior nos perguntamos para que serve o jornalismo musical. No Twitter, a cantautora argentina Julieta Laso questionou para que servem as canções e respondeu com uma síntese inspiradora:
“¿Para qué sirven las canciones? Para hacer una polvareda sonora que funciona como un techo, una cúpula donde todxs podamos cobijarnos y recordar que somos un gran continente. Y juntar fuerzas para salir adelante." (Julieta Laso, 7 abr. 2024).
Falando em seguir adiante, em abril a revista Rolling Stone iniciou um projeto chamado Future of Music, com reportagens e eventos que visam debater o futuro do planeta através da música. Entre as primeiras publicações está uma matéria sobre contribuições possíveis da indústria musical para a crise climática. Uma delas é o Sounds Right, do Museu das Nações Unidas, em que a natureza é a convidada para participar de inúmeros lançamentos fonográficos (entre eles, Rompecabezas, que uniu a madre tierra aos colombianos da Aterciopelados, os argentinos da Los Auténticos Decadentes e a mexicana Vivir Quintana).
Com isto, juntamos forças ao Rio Grande do Sul e vamos às novidades do último mês na canção latino-americana!
El David Aguilar anda mais ao sul. Veio do México para a América Meridional em turnê que passará neste mês por Montevidéu, Santiago, Buenos Aires e São Paulo. Vem mostrar o novo disco que acaba de lançar nas plataformas, o melhor de sua carreira de 20 anos, Compita del destino.
Já havíamos destacado aqui na newsletter dois ótimos singles lançados en adelanto. Primeiro, Tuyo, que possui um jogo matreiro de palavras, parecendo uma canção de amor, enquanto fala de encontros culturais. Depois, Prieta, a mais original do disco, com um papo reto que situa e denuncia o racismo na realidade mexicana.
E o nível se mantém, o álbum inteiro é uma coleção de canções distintas, bem acabadas. O cuidado em cada verso/compasso é comparável ao mesmo que têm compositores como Caetano Veloso e Jorge Drexler. Tal qual é seu amor pela música de seu país, que mescla com tudo o que for pertinente para dizer algo instigante. Um cancionista moderno arquetípico (o que não significa limitação alguma, pelo contrário).
Inicia com Luz de cabeza, uma letra de macho desconstruído, coisa que partilha com seu ídolo John Lennon, de quem verte a inesquecível Woman para o espanhol. Em Morra, David mostra sua habilidade com os versos e na relação que eles estabelecem com o tempo.
Conduzindo cada gravação a guitarra y voz, agrega percussões, programações e metais. A sonoridade conferida pelos vientos garante arranjos completos, ora com pegada mais jazzística ora muito próxima da tradição mexicana.
Entre tantas canções geniais, Xenoapático se destaca pela letra divertida e crítica. Diz que não importa onde se nasce, ou qual o gênero musical se escuta, ou ainda: "si tu abuelo fue bisnieto del tataranieto de un bisnieto descendiente de un amigo de Jesús”. Embora faça uma ressalva:
"No se niegan los mosaicos culturales, ni el valor de tantas vidas ancestrales/ Pero, más que festejar las diferencias, este canto abrazará las coincidencias" (El David Aguilar, Xenoapático).
Um sopro fresco de inventividade e inteligência. Confirmadíssimo no top 10 do ano.
Uma instrumentista de mão cheia, mas também uma cancionista. Fabiola Méndez domina o cuatro, que utiliza para se auto-acompanhar e para compor temas que prescindem da voz. Vivendo em Cambridge (EUA), a musicista natural de Porto Rico acaba de lançar Flora Campesina, quarto disco de uma carreira já legitimada como referência do jazz e do folk.
O álbum alterna faixas mais dedicadas às possibilidades de fusión instrumental da música jíbara (tradicional porto-riquenha) e canções sobre amor e reflexões terrunhas. Nem sempre é possível separar essas duas intenções de estilo, que ocorrem ao mesmo tempo em performances muito bem gravadas, como em Maestra Madera.
São dez faixas inéditas, assinadas por Fabiola, acrescidas de décimas escritas por trovadores e trovadoras de sua ilha natal, como Noelis Guzmán Sáez. Entre ritmos como a bomba, o pasillo e a rumba, a artista procura expressar quem é, abraçando sua cultura ancestral na diáspora.
Em meio à catástrofe climática no Rio Grande do Sul, precisamos agora “parar para ouvir o mugido de uma vaca". Essa sugestão, contida em uma das canções de Clarissa Ferreira, tem a capacidade de nos levar tanto a repensar nossas relações com a natureza quanto a escutar um álbum primoroso.
LaVaca é o grande lançamento da música gaúcha neste ano e deve figurar entre os destaques da MPB. Afinal, Clarissa Ferreira é uma cancionista que reflete sobre o chão inundado onde pisa. Protesta face à destruição da Pampa. Ergue sua voz com entoação bem pensada e sensível, conectando-se ao coro da mais criativa música brasileira contemporânea. Trata temas da cultura e da natureza com propriedade, senso crítico e humor.
Ouçam o mugido, o verso, o violino, o violão, as vozes parceiras, como as de Ana Prada, Loma, Ana Matielo e Vitor Ramil. Comecem pela fabulosa A Vaca, com poema de Mário Quintana. Sigam faixa a faixa para encontrar a paródia de Martín Fierro sobre cavalos de laboratório, a ode às tiranas e à sororidade, o hino regional antirracista feito Flor de Pedra, e outras tantas pérolas.
Além de escutar, recomendo ler e acompanhar Clarissa Ferreira nas redes sociais. Desde o início de seus anseios reflexivos no blog Gauchismo Líquido, passando por seu excelente primeiro livro de ensaios e chegando aos vídeos que vem produzindo sobre a crise climática e cultural no Rio Grande do Sul.
O rapper porto-riquenho Residente é conhecido por suas letras diretas, que tocam o dedo na ferida, como na sensacional This is not America. No início do ano, lançou o single 313 com um videoclipe de produção cinematográfica. Já era uma versão bem diferente da estética que costuma evocar. Pois mandava seu recado não tão agressivo nem tão falado como de costume, mas cantado de forma mais contida e melodiosa.
Eis que agora vem essa outra versão, num clipe gravado dentro do Museu do Prado em Madri, de performance captada in loco, em meio a pinturas renascentistas, apenas com acompanhamento de vozes femininas e um violino. Uma aproximação do espectro da canção, por um artista que não se prende ao gênero musical.
A Sociedade Chilena de Autores e Intérpretes Musicais (SCD) concedeu um prêmio à cantora Myriam Hernández, como uma figura fundamental da música chilena. No canal da SCD no YouTube, é possível assistir a um documentário sobre a homenageada e a essa performance exclusiva de Mon Laferte, aí em cima. Não podia ficar de fora da nossa lista de clipes do mês, afinal uma interpretação dessas na cozinha não é todo dia que vemos ser consolidada em um audiovisual impecável.
As chamadas live sessions são tendência na circulação de música no meio digital. Formato mais democrático que o videoclipe, requer menos recursos de produção. Em compensação, permite uma fruição mais próxima, um contato mais íntimo com o artista. É assim a sessão ao vivo da argentina Mel Muñiz em Apasionadamente, regravação de uma das canções marcantes do seu ótimo álbum de estreia, Aguerrida, de 2020.
Acima a arquicanção em sua performance típica, que "sustenta o castelo" do cancionista. Não se pode sacar essa carta fora, sem ela não há mais canção. Tudo começa nesta matriz: voz e violão. "Hay tantas cosas, yo solo preciso dos, mi guitarra y vos". Jorge Drexler é o principal expoente na atualidade, entre os que se dedicam a manter e transformar a tradição cancionista.
O gaúcho Rafa Costa estava com gira platina marcada pra iniciar em maio. Mas com a enchente histórica no Rio Grande do Sul, foi impedido de pegar a estrada. Ao lado de outros dois cantautores, Zelito Ramos e Pedro Borghetti, iria passar por Alegrete, Paysandú, Buenos Aires, Federación e Porto Alegre. No repertório, estaria o single Água Pura, que ganhou esse baita videoclipe. Por enquanto, vamos nos contentar em assistir a essa produção cheia de energia e sensibilidade.
Prográmate
São Paulo | 21 de maio | El David Aguilar | +info
Buenos Aires | 23 de maio | Festival Sube al Sol | +info
Buenos Aires | 24 de maio | Hugo Fattoruso & Fernando Cabrera | +info
Descubre lo que importa:
[Coolt] Alex Cuba o el éxito de no sentir nostalgias
[Acción] Las infinitas formas de la canción - entrevista a Kevin Johansen
[Senhor F] El Mapa de Todos, palco brasileiro para artistas latinos emergentes
[El País] Fito Páez conversa con Leila Guerriero sobre el amor, la muerte y la música
[Tiempo] Miss Bolivia: 'Al fascismo hay que decirle qué ganas de no verte nunca más'
Nossa playlist do mês empieza com vozes raras. Primeiro António Zambujo 🇵🇹 interpreta docemente a clássica guarânia Recuerdos de Ypacaraí, com o costado luxuoso de Yamandu Costa 🇧🇷. A seguir, Masilva 🇨🇴, que soltou nas plataformas um álbum inteiro de canções originais coloridas por seu timbre impressionante. Depois, Sofia Viola 🇦🇷 com sua entoação pungente e o baiano Tiganá Santana 🇧🇷, de um cantar macio e profundo, coroando com perfeição a melodia de Das Matas.
Entre os lançamentos mais interessantes do mês, o encontro de duas gerações da MPU, Kuropa e Ruben Oliveira 🇺🇾, o primeiro single do próximo álbum da excelente cantautora Grecia Alban 🇪🇨 e as sempre pertinentes Perotá Chingó 🇦🇷 num feat com o mestre Jorge Drexler 🇺🇾.
A lista inclui algumas canções já comentadas acima nas resenhas, ao lado do bolero-glam de Daniel, Me Estás Matando 🇲🇽, o pop de Laró 🇨🇱 e Juan Pablo Vega 🇨🇴, o protesto de Leiden 🇨🇺, o folclore contemporâneo de Rayna 🇨🇴 e Mariela Condo 🇪🇨, entre outras.
Confiram meu perfil no Spotify.
Que se vengan las canciones
Quem anunciou disco novo foi o argentino Abi González, seu terceiro como solista. Vai se chamar 11 Puerta 3 e contará com parcerias com Raly Barrionuevo, Lula Bertoldi, Sofía Viola, Luna Monti, Benjamín Amadeo e Luciana Jury.
No sul do Brasil, a cantora Vanessa de Maria vem preparando um álbum para breve, com participações dos argentinos Teresa Parodi e León Gieco.
Acompanhe diariamente os novos singles, clipes e álbuns, seguindo o perfil canciones_paradespertar no Instagram.
Gracias pela leitura e até a próxima.
¡Hasta!
Arte sempre! Nisso lembro Hernández: "Los Hermanos sean unidos que esa es la ley primera."