Canções para dissipar a kamanchaka
#13 | Porque o Brasil está de costas pra América Latina e não gostamos disso
Buenas! Há quase um ano escrevo esta newsletter recomendando canções latino-americanas para o público brasileiro. Tal linha editorial faz aparecerem nas playlists mensais uma maioria de composições cantadas em espanhol, mas não exclusivamente. Pois volta e meia podem aparecer gaúchos, baianos, paulistas, paraibanos ou de qualquer dos estados do país, desde que dedicados à integração cultural com os hermanos.
Quem lê a news desde o final do ano passado, ou escutava o programa na Rádio UPF, entre 2019 e 2023, sabe. O que nos move é conhecer mais a canção produzida hoje no continente.
Nesta edição #13 vamos dissipar a kamanchaka escutando o que de mais interessante apareceu em outubro nas plataformas de streaming. Em meio à nuvem espessa do caos ambiental, dos golpes, da dominação tecnológica invisível e da desigualdade histórica, a América Latina responde com vida, criatividade e perseverança. As canções lançadas a cada dia materializam esse estado de espírito. Por isso gosto tanto de escutá-las e tenho prazer em recomendá-las pra vocês.
Assim vamos nos próximos 7 minutos de leitura. Para saber, por exemplo, por que o novo disco da colombiana Marta Gómez é uma celebração das raízes sem público-alvo definido, ou por que o álbum Água Viva da uruguaia Inés Errandonea está na vanguarda da música popular.
Ademais, como em todas edições, uma playlist exclusiva só com novidades (que aliás é construída desde a primeira semana no Spotify, de forma pública, e pode ser seguida antes da newsletter chegar).
Sem mais delongas, vamos às resenhas do mês!
Ainda que a uruguaia Inés Errandonea não se filie a gênero algum, sua busca musical vale-se de sintetizadores e folclores diversos. Sua atitude persegue tanto o que pode ser reconhecido como original quanto autóctone. Estivéssemos na era Moderna, seria uma artista de vanguarda.
A capa celeste já é um prenúncio simbólico conectado ao território, embora seu corpo esteja à deriva. O título Água Viva propõe liquidez, partindo o nome do bicho aquático que queima em duas palavras separadas. Se vivêssemos um tempo passível de definição, este gesto seria pós-moderno.
Após a estreia fonográfica com o excelente e premiado La vida real, a cancionista impressiona pela maturidade das composições neste novo. Canções como a primeira faixa, Iuju, harmonizam a inspiração em temas folclóricos com a sonoridade final preparada com o apuro estético e técnico dos nossos dias. Para isso, conta com a produção impecável de Juan Ignacio Serrano.
As letras vigorosas colocam sua autora como sentinela da desforra feminina. Sempre em primeira pessoa, a voz aparentemente frágil, dá o troco ora com ironia ora com candura.
Seré Guitarra é seu 22º disco! Entre infantis e autorais, os álbuns de Marta Gómez costumavam definir mais o público a que eram dedicados. Neste novo, não. Suas mensagens de paz e alegria são capazes de tocar a todas as faixas etárias.
Resultado da elaboração artística de uma experiência de vida muito próxima da violência, a carreira da colombiana é prolífica. Cresceu em Cali, estudou em Boston e está radicada em Barcelona. Reconhecida como cancionista latino-americana, daquelas que visitam todos os cantos do continente, neste álbum reafirma essa insígnia.
A consistência das composições e o acabamento nas gravações de Marta Gómez levam-nos ao encantamento por matizes diversos. Com o caribenho Elkin Robinson, um calypso bilíngue. Com o compositor argentino Piero, uma daquelas à la Mercedes Sosa. Em O Lobo, a equação lapidada de elementos contemporâneos com um tema ancestral. Algumas mais notadamente endereçadas a los niños, como La rebelión de la risa, que ganhou um arranjo complexo para coroar seu astral contagiante.
Marta Gómez bebe da tradição das canciones de cuna, da matriz Duerme negrito. Neste contexto, a canção de ninar não é infantilizada, a exemplo da faixa Arrullo, com voz carinhosa mas adulta. Com essa performance, embala letras que levam um olhar inaugural, de reconhecimento das coisas mais elementares, como a folha que cai da árvore, a chuva que limpa ou a mariposa vagarosa.
▶️ adelantos y canciones singulares
Depois de um disco incrível, lançado em 2021, a mexicana Laura Itandehui começa a revelar os frutos da nova safra de canções, com um single de aquecer o coração e reativar nossa esperança na humanidade. La distancia, um bolero elegante, cantado baixinho, com sopros suaves no contraponto. Que venha o disco!
Artista pop entre os mais ouvidos do Chile, Gepe volta e meia dedica-se ao folclore. Foi assim no álbum Folclor imaginario (2018), de forma explícita. Agora, no novo Undesastre, apresenta faixas mescladas, como esta que selecionei acima. A sonoridade não funciona como colagem de referências. Há uma identidade aprimorada nos álbuns de Gepe, perceptível na equalização dos violões, cuatros e charangos, que remente a uma ambiência andina profunda, não apenas um colorido. Mecha é a mais inspirada, trata dos incêndios criminosos que ocorreram no início do ano em Viña del Mar, estendendo sua crítica ao espírito do tempo. Pois, ao final, o incendiário se queimou.
Comovente. A primeira faixa do novo disco do gaúcho Vitor Ramil, todo dedicado a poemas do paranaense Paulo Leminski, comove. Não precisaria dizer nada aqui, só convidar à audição. De repente, você sentisse. Mas vou dizer. A presença do poeta na gravação, promovendo uma ode à música é o primeiro ponto. O cantor acionando todo o seu registro vocal, para entoar versos simples e dizer até com boca chiusa, é o segundo. Os músicos dominando a performance minimalista para emoldurar um poema sintético, é o terceiro. De repente é uma mostra de um álbum influente, que conjuga a maestria da literatura do poeta à sonoridade original de um inventivo milongueiro.
Tu corazón é uma faixa maiúscula do disco Cursi da cordobesa Zoe Gotusso. Não que o álbum todo não mereça audição, ao contrário. Mas gostamos aqui de garimpar o que há de proeminente e de conexo ao cancioneiro latino-americano.
O primeiro sucesso de Zoe, daqueles de atingir marcas de reprodução no streaming e fazer o público cantar do início ao fim nos shows, foi a bossa María em 2020. Após uma série de singles, a argentina dispara esse novo trabalho com reverência à música brasileira e um acento pop. Tem parceria com Paulinho Moska, o embaixador carioca da integração latina e versão em espanhol de Como uma onda (Lulu Santos/Nelson Motta).
Mas o que desejo destacar aqui é Tu corazón, bossinha solar de amor, com aquele piano econômico e elegante, colorindo a batida do violão. Melodia bem resolvida, como de costume na obra desta compositora jovem e consistente.
(na sequência há um blues dedilhado com perfeição, Amar y partir… mas aí já estaria comentando o álbum inteiro)
▶️ videos y sesiones
Em outubro circularam inúmeras sessões musicais gravadas em vídeo, como esta primeira selecionada com a cubana Eileen Sánchez. Câmera em plano sequência, procurando mostrar com proximidade a performance intimista de uma canção leve e bela.
Em uma charla íntima com a plateia, Natalia Lafourcade abre suas memórias e revela pensamentos sobre a vida e sobre a música. Toca ao violão grandes canções consagradas de sua lavra, a exemplo de Hasta la raíz, reconhecida como uma das mais importantes da música latino-americana no século XXI. Neste vídeo, a cancionista mexicana demonstra articulação intelectual, matéria prima das canções mais contundentes, ainda que na superfície pareçam e sejam simples.
O chileno Diego Huberman costuma reconfigurar a ambiência coletiva de sua árvore familiar em suas performances. Nesta Sesiones de La Cuadra, gravada em Bogotá, faz jus à proposta ampla representada em seu nome artístico, El Árbol de Diego. A canção Soy lo que doy integra o disco Destellos de sol, lançado neste ano. Para além desta buena onda callejera registrada no vídeo, seu trabalho incorpora e ressignifica o espírito trovadoresco da nueva canción chilena.
Prográmate
Maceió | 14 de novembro | Franny Glass | +info
Porto Alegre | 20 de novembro | Pachamamáfrica | +info
Buenos Aires | 22 de novembro | Martín Buscaglia | +info
Madrid | 24 de novembro | Ana Prada | +info
Ciudad de México | 28 de novembro | Gepe | +info
Porto Alegre | 30 de novembro | Chisme Festival | +info
Montevidéu | 30 de novembro | Festival Música de La Tierra | +info
A playlist começa despacito neste mês, com o single maravilhoso de Laura Itandehui 🇲🇽, e segue com outros artistas que já comentei aqui, até o rock impecável de Luna Sujatovich 🇦🇷.
Na seara mais tradicional, a linda milonga de Diego Presa 🇺🇾, as décimas reminiscentes da exilada Katie James 🇨🇴 e a interpretação de Catherine Vergnes 🇺🇾 para um clássico do folclore de seu país.
Como sempre, contempla a diversidade de gêneros e origens, nas vozes de iLe 🇵🇷, Masilva 🇨🇴, Magdalena Matthey 🇨🇱 feat. Natalia Lafourcade 🇲🇽, Isa Sáenz 🇪🇨, Leiden 🇨🇺.
Ainda contém amostras de grandes álbuns de outubro, como os das cancionistas Victoria Sur 🇨🇴 e Laura Guevara 🇻🇪, e como os dos grupos de jazz de Carlos Aguirre (Almalegría) 🇦🇷 e de Gonzalo Del Val 🇪🇸 (com Valentina Marentes 🇲🇽).
Boa audição!
Descubre lo que importa:
[Página 12] Inés Errandonea: "Si me preguntan qué música hago, ya ni sé qué decir"
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[Rock & Pop] Gepe y su nuevo álbum 'UNDESASTRE': "Hay que celebrar la estética del error"
[La Banda Elástica] Valentina Marentes: “No escribo sobre amor o desamor; yo canto para no morirme de tristeza”
★ Que se vengan las canciones
O mês já começou com o novo álbum de Franny Glass, compositor uruguaio que havia abandonado o pseudônimo a lançado o álbum anterior com o nome de batismo, Gonzalo Deniz. Será um dos assuntos mais legais da próxima edição. Uma mostra está em nossa playlist, o adelanto Va rodando.
No início de novembro conheceremos ainda os vencedores dos prêmios Grammy Latino e Graffiti do Uruguai. Escutaremos o single de Mário Falcão e Pablo Lanzoni, interpretando canção de Alexandre Vieira, e o single de Sílvia Perez Cruz e Juan Falú, interpretando Caetano Veloso.
Vamos ficar atentos, porque sempre pintam surpresas. Ainda bem!
Gracias pela leitura! Mês que vem tem mais. Se gostou, compartilhe em suas redes acionando o botão abaixo. Seguimos conversando no Instagram ou na caixa de comentários acima. Hasta!
muito obrigado da Espanha! Que bom que você gostou do meu último álbum.
Abraço, Gonzalo del Val.
João, gosto muito quando sai sua newsletter. Sempre fico com a sensação de estar passeando em universo de sons novos à serem curtidos. Vida longa!