#10 | Curadoria de canção latino-americana, feita à mão
Playlist do mês, pitacos sobre streaming, resenha de Alejandro y María Laura
Buenas, começando aqui nosso chasque mensal, lembrando o slogan da Rádio UPF, emissora onde transmiti por quase 4 anos o programa que deu origem a esta newsletter. A ótima sacada, “feita à mão”, de Gerson Pont e equipe, valoriza o ofício de curadoria e motiva relações de escuta que tangenciam a randomização reiterativa das plataformas de streaming.
A artesania humana contrasta com a lógica algorítmica, de pretensa customização. Os sistemas digitais de recomendação levam à ilusão de que soará no nosso fone de ouvido tudo que é bom.
Guy Debord anotou certa vez que na sociedade do espetáculo "o que aparece é bom, o que é bom aparece”. Nada mais enganoso, considerando o contexto midiático massivo que o inspirou. Já nos nossos dias, poderíamos reelaborar esse axioma imagético para:
"O que o Spotify recomenda é bom; o que é bom o Spotify recomenda".
Agora, enquanto ouvinte, confesso que amo o Spotify. Às vezes ele é certeiro, parece mágica. Enquanto escrevia esta newsletter, distraí-me no player e acabou entrando uma faixa aleatória. Foi como descobri o colombiano Pantoja, com uma metacanção que dialoga perfeitamente com nossas reflexões aqui.
Contudo, meu amor não é cego. É preciso reconhecer que nos serviços de streaming entramos numa autorreferencialidade infinita, retroalimentada pelo mais do mesmo. Com isto, fica difícil para as novidades de fora entrarem no radar de escuta dos usuários.
Como chegamos até aqui? Para lembrar um pouco, vale a leitura do texto de Andressa Solio no BaixaCultura, sobre o Napster. Afinal, passamos de uma era de livre compartilhamento e queda dos lucros das gravadoras, para uma era de hiper consumo acessível, com baixo ou nenhum retorno para a maior parte dos autores.
Napster e Spotify à parte, enxergam-se iniciativas emergentes, que podem flopar amanhã de manhã, ou revolucionar o mundo de novo. A startup da vez é a Patreon, um misto de LinkedIn e MySpace, que propõe o contato e a negociação mais direta entre músicos e fãs. Já em outro campo ideal, aposta-se na Economia Digital Solidária, para construir plataformas que unam tecnologia e cooperação.
Os músicos também buscam alternativas para driblar o looping algorítmico. Às vezes, românticas. O argentino Lisandro Aristimuño, por exemplo, lançou sua própria plataforma de streaming, a MSFL, ou Música Sin Fines de Lucro.
Mas a postura anti-sistema sofre reveses, frente ao domínio do espectro total. O canadense Neil Young havia levado seus clássicos do folk para fora do Spotify, em protesto contra a disseminação de desinformação em podcasts. Contudo, retornou após 2 anos, apenas fazendo críticas à qualidade de som da plataforma.
A revista Noize levantou esse debate entrevistando Leonardo De Marchi sobre seu novo livro, que esmiúça os meandros tecnológicos que transformaram completamente a circulação da música no mundo, com informações preciosas também sobre a indústria fonográfica no Brasil.
Outra entrevista interessante foi realizada pelo El Diário Ar, com Glenn McDonald, um funcionário recém despedido pelo Spotify, que prepara o lançamento de um livro revelador das entranhas da empresa sueca.
Já o Núcleo Jornalismo produziu uma reportagem sobre os artistas fantasmas, descobrindo uma prática controversa do serviço de streaming. E o portal Metrópoles investigou os ouvintes fantasmas, uma forma de jabá.
Enquanto assombrações povoam o ambiente digital, parte dos fãs parece querer restabelecer a relação física. A propósito, o Nexo Jornal publicou uma notícia sobre o contínuo crescimento das vendas de vinil.
Então, pra que lado vamos? Por aqui, seguimos comentando canções, ainda sem o uso de inteligência artificial, e recomendando outros projetos afins. Já ouviram falar da seleção dos 600 discos fundamentais da América Latina? Foi feita à mão por um monte de gente. Guardem essa lista pra ler depois.
Agora, vamos às resenhas e dicas do mês!
A dupla peruana Alejandro y María Laura lançou novo álbum, um ano após o excelente Madre Padre Marte. Com doçura, contemplação e afinco dosados na medida, revelam uma safra de canções assobiáveis. Top 10 em 2024, com certeza.
Na primeira faixa, tematizam o lugar, bem como os modernos fazedores de canção. Também como migrantes que são, pois viveram no México e agora foram pra Espanha. Em Lugar ideal, convidam para essa reflexão o espanhol El Kanka (o cancionista europeu mais latino-americano de todos): "Yo ya no sé si hay lugar ideal, o ese lugar soy yo".
Tal cogitação, apartada de qualquer determinismo nacionalista, permeia todo o álbum. Em outra canção, recolocam explicitamente:
Estoy un poquito allá y un poquito aquí
Buscando el camino que me lleve del fruto a la raíz
Yo no pasé por aquí, aquí pasó por mí(Yo no pasé por aquí, Alejandro y María Laura)
Como boa dupla, suas vozes se complementam na maior parte dos arranjos. Mas também combinam com timbres de convidados. Em Tiempo para el amor, María Laura reveza com La Lá uma aparente fragilidade na interpretação, que vai revelando aos poucos uma letra potente.
Já na faixa à capela, Lo que se te antoje a ti, uma voz rasgada, agressiva, imponente, que revela a qualidade interpretativa do lado feminino da dupla. Provoca tensionamento na escuta, para, em seguida, relaxar em mais uma balada fofa. O contraste na sequência do álbum conforta e acaba realçando a doçura, como algo necessário em alguns momentos.
O disco está à venda em vinil duplo, contendo as 10 canções inéditas disponíveis no streaming e outras 10 releituras de suas próprias composições. Alejandro y María Laura também estão em turnê internacional, pela Europa e América Latina. Reflexos de uma carreira bem administrada, que chega ao auge artístico com boas condições de produção.
Abaixo, um clipe visualizer, feito pro Instagram, estrelado por lhamas. Imperdível, porsupuesto.
Mercedes | Eileen Sánchez
Nascida en Havana (Cuba), estudou clarinete e piano. Começou a compor aos 18 anos e foi estudar jazz no Uruguai. Eileen Sánchez lançou seu primeiro disco matizado pelo soul e pelo candombe, formando um conjunto eclético de canções. Uma estreia daquelas que prometem.
Por ejemplo ahora | Double Rainbow
Duo argentino formado por Nacho Rodríguez (integrante do grupo Onda Vaga) e Ezequiel Borra (compositor de talento ímpar). De gira pelo Brasil, vieram estreitar o laço que já aparece em sua estética. Gravaram inclusive uma bossa com Moreno Veloso. Desta forma, conjugam a criação cancionista com uma sonoridade indie.
videos y sesiones
⬆️ Inés Errandonea é um dos nomes presentes no novo projeto da AGADU, Sesiones Pegaso, um palco digital para os autores uruguaios, sucessor do emblemático ciclo Autores En Vivo, que circulou além fronteiras durante uma década.
No vídeo acima, uma de suas performances provocativas, no bolero Decidí cantar, de melodia aderente a uma letra bem posicionada. Ao longo de sua sessão, Inés mostra versatilidade, mesclando canções do primeiro disco e singles recém lançados.
Outras sessões lançadas neste mês foram de Milongas Extremas, quarteto de violões de nylon com punch, de Sofía Álvez, cancionista original com muito suingue, e de Papina de Palma, revelação da música uruguaia.
⬆️ As espanholas Rita Payés e Silvia Pérez Cruz se encontram nesta obra-prima da canção hispânica, com aires de flamenco, mas mantendo a dicção da música popular. Instrumental luxuoso e interpretações econômicas e precisas. El Panadero é uma das faixas do excelente novo álbum de Rita, chamado De camino al camino.
Prográmate
Buenos Aires | 23 de agosto | Dolores Solá & Julieta Díaz | +info
Cusco | 24 de agosto | Alejandro y María Laura | +info
São Paulo | 24 de agosto | Por Ejemplo Ahora | +info
Porto Alegre | 3 a 6 de setembro | Unimúsica - Remixando RS | +info
Bogotá | 14 e 15 de setembro | Festival Cordillera | +info
📰 Descubre lo que importa:
[La República] Creando América, por Alberto Vergara
[DW Español] Pascuala Ilabaca le canta a la mujer chilena
[El País] Natalia Lafourcade, mezcales y parranda caribeña con la Orquesta Imposible
[La Tercera] Los 600 discos de Latinoamérica: cómo se hizo la lista que festeja a un continente
▶️ Um mês de lançamentos acima da média e com muitas canções brasileiras em nossa playlist 🇧🇷. Destaque para Nada, com as gaúchas Paola Kirst e Marietti Fialho, numa performance pungente. Também a trinca inédita formada pelo paraibano Chico César, o carioca Cláudio Jorge e o gaúcho Gelson Oliveira, no canto de protesto sobre a destruição da natureza, Muda.
Do Uruguai, uma safra farta, com nomes fortes da MPU 🇺🇾, como Rossana Taddei e Samantha Navarro lançando novidades. Imperdível ainda a versão de Biromes y Servilletas, de Leo Maslíah 🇺🇾, com os argentinos Kevin Johansen, Andres Mayo e Delfina Cheb, e a uruguaia Mocchi.
E no meio da diversidade de sempre, não deixarei de citar Charles Bórquez 🇨🇱, Rafa y Tinin feat. El Otro Polo 🇻🇪 e Ricardo Pita 🇪🇨, com mais um adelanto de seu novo disco.
Boa audição!
Que se vengan las canciones
A costarriquenha Karol Barboza vem ao Brasil em setembro para uma residência de três meses em Pelotas, ao lado de Leandro Maia. Vai desenvolver aqui o projeto "Puentes y canciones", selecionado pelo programa Ibermúsicas. Enquanto isso, vamos conhecendo seu trabalho no clipe da canção matorrales.
Finalmente, dia 11 de setembro, sai o novo disco de Charly García. Vai se chamar La lógica del escorpión e já teve a capa divulgada. Aguardadíssimo.
Seguimos camperiando canções significativas e compartilhando com alguns comentários.
Gracias e até a próxima!